A
JANELA OCULTA
Sentado
em frente a uma mesa, Jorge olhava os muitos papeis espalhados.
Aproximava-se
o veräo … vinham as ferias …
Sempre
tirava o mes de agosto … e sempre ia, com toda a familia, para a
praia … Nazaré … Figueira da Foz … Säo Pedro do Estoril …
Caparica … Faro … Monte Gordo … alguns anos passavam a
fronteira … Matalascañas … Cadiz … Benidorm …
O
problema é que, económicamente, este ano estava a coisa
particularmente complicada.
Foi
a pandemia … depois a mudança de emprego … o despedimento de
Maria, sua esposa … tudo muito complicado …
Este
ano estavam quase em numeros vermelhos … teria que pensar num plano
“B” …
—
Navegando
entre papeis e numeros ?!
Maria
tinha-se aproximado silenciosamente.
—
Estou
a tentar planificar as nossas ferias … mas isto está complicado …
—
Ficaremos
em casa … sem problema.
—
Tentarei
encontrar uma soluçäo — pelos miudos … e também por ti e por
mim … sempre é bom mudar de ares … pelo menos uma vez por ano …
—
Sei
que encontrarás uma maneira … conheço o meu marido … sai ao seu
pai …
Deu-lhe
um beijo carinhoso na face e saiu da sala.
Jorge
sorriu para dentro … sim … o seu pai fora um homem com um grande
espirito de inciativa … trabalhou toda a sua vida … afinal …
acabou por deixar a casa … a horta … na aldeia … tudo
abandonado …
O
seu pai … … a aldeia … … porque näo ?!?
—
MARIA
!
A
cabeça da sua esposa apareceu na porta entreaberta.
—
Chamaste-me?
—
Vem
cá … acabas de me dar uma grande ideia.
—
Eu
?!? O que é que eu disse !?!
—
Mencionaste
o nome do meu pai … isso fez-me acender a minha luz interior … e
se formos passar o mes de agosto ás Sarzedas? A casa do meu pai?
Maria
ficou uns segundos pensativa.
—
Estará
em condiçöes para os pequenos?
—
Sim.
Lembra-te que eu estive la há umas semanas a procurar uns papeis? A
casa está muito bem … apenas necesita de uma limpeza … nada mais
…
—
E
tem agua e luz?
—
Claro
que sim … nunca as mandei cortar.
—
Pode
ser uma boa ideia … mas prepara-te para uma feroz oposiçäo por
parte dos nossos filhos.
Maria
tinha razäo. Jorge teve muitas dificuldades ao tentar “vender” a
ideia.
A
Manuela, 14 anos e a Julio, de 12, näo encontraram muita graça na
ideia de passar um mes inteiro numa aldeia de pouco mais de 800
habitantes e numa casa de pedra …
Jorge
usou todo o seu poder de argumentaçäo …
—
Tranquilos
… pensem um pouco … näo haverá a confusäo da praia …
respira-se ar puro … lembrem-se que Sarzedas está em plena serra …
—
Jorge
… a horta do teu pai ainda tem o tanque de agua?
Jorge
abriu mais os olhos …
—
É
verdade! Se o mando pintar … dará uma mini piscina …
Pela
primeira vez sentiu a cara da sua filha mudar … Julio parecia mais
renitente … olhou para o pai:
—
E
a casa tem internet?
—
De
momento näo … mas eu comprometo-me a mandar instalar um wifi,
quando chegar o momento …
—
Olha,
Julito … — falava Manuela — podia ser interessante … eu tenho
a minha piscina … tu tens a tua internet … porque näo ?!
Para
alivio de Jorge e Maria, por fim, a familia estava de acordo.
Limpar
os acessos á casa, a horta, e pintar o tanque … custaría umas
centenas de euros … mas, na totalidade, as ferias seriam um
investimento muito menor que em outros anos.
Além
disso, Sarzedas estava a 20 km de Castelo Branco … mais ou menos
uns 20 minutos de casa.
--------//--------
Finalmente
chegou o grande dia.
Todos
os anos, o primeiro de agosto era sinonimo de excitaçäo … nervos
… frenesim … e, claro, quilómetros e quilómetros de viagem …
que este ano, seria curta.
—
Papá!
—
Diz-me,
Julito — falava enquanto conduzia.
—
A
casa do avô sempre foi da nossa familia?
—
Sim.
A casa foi construida pelo teu quinto-avô … e todos sempre viveram
lá. — olhou sonridente para Maria sentada ao seu lado.
Manuela
viu a oportunidade de assustar o seu irmäo.
—
E
lá morreram todos — olhou para a janela, divertida.
—
Todos
?!!!!
—
Sim,
Julito … bem … todos menos o teu quatro-avô, Oscar …
—
E
o que é aconteceu com ele?
—
Ninguem
sabe … um dia, simplesmente, desapareceu … e nunca mais voltou …
A
conversa parou ao passar o chafariz, do lado esquerdo da estrada …
estavam a chegar.
A
rua de Säo Pedro, ao cimo da qual se encontrava a casa, estava logo
á entrada da aldeia … mas era muito estreita, ingrime e tinha dois
sentidos …
Jorge
preferia sempre atravessar toda a povoaçäo e subir por outra rua …
mais curta … e que ia direita á capela de Säo Pedro … a casa
estava mesmo ao lado.
Manuela
e Julio conheciam bem o local, tinham visitado o avô em varias
ocasiöes.
Ficaram
surpreendidos com quäo limpa e organizada estava a casa …
—
Até
parece que continua a viver aquí alguen, mamä …
—
Bem
… eu e o teu pai viemos um par de veces, nas últimas semanas para
ter tudo pronto para vocês.
—
Filhos
… há um quarto livre no andar de cima e outro aquí … podem
escolher …
—
Quero
o de cima — Manuela sempre se antecipava, coisa que irritava o
irmäo.
—
E
porque tens de decidir tu?!
Manuela
olhou o irmäo com un certo ar de superioridade.
—
Porque
sou a mais velha … Parece-te suficiente?!
Julio
encolheu os ombros e dirigiu-se ao quarto que estava ao final do
corredor.
Abriu
a porta … era grande … gostou de imediato.
Sentou-se
na cama … pareceu-lhe muito confortavel …
Desde
aquela posiçäo foi vendo todos os pormenores … sempre o tinham
impressionado as enormes janelas daquela casa … entrava muita luz …
de noite, fechavam-se com umas altas portas de madeira … por dentro
… segurança total.
A
outra parede tinha duas portas … uma näo chegava ao chäo.
Abriu
a primeira … tinha uns armários e um roupeiro …
Tentou
abrir a mais pequena … mas estava fechada … á chave …
Que
estranho … que haveria do outro lado? Outro armario ? … e …
porque estava fechada?! …
—
MENINOS!
Venham!
Em
menos de um minuto estavam todos no saläo grande.
—
Vamos
mostrar-vos como está a horta … e de volta passamos pelo
supermercado … temos que cozinhar …
O
terreno estava mais ou menos a um quilómetro da aldeia … foram de
carro … mas podia-se perfeitamente ir a pé …
Todos
ficaram encantados com o simpatico espaço onde näo faltava um poço
de agua … uma enorme laranjeira ... muitas oliveiras e figueiras …
e, claro … o tanque …
Manuela
estava maravilhada com a sua pequena piscina …
Julio
mantinha-se algo distante … aquela janela fechada näo lhe saia da
cabeça … ao pai isso näo passou desapercebido.
—
Julito
… o que se passa contigo ?! — passou-lhe o braço pelos ombros —
näo estás a gostar do que vês?
—
Sim,
papá … estou a gostar muito da horta e da casa …
—
Entäo
o que é que te preocupa?
—
No
meu quarto há uma janela, ou uma pequena porta … mas está fechada
á chave … sabes porquê ?!!!
—
Ah!
Sim … já nem me lembrava dessa meia porta … sempre esteve aí …
e sempre esteve fechada … pelo menos desde que me lembro … näo
te preocupes com isso … disfruta das ferias …
—
Obrigado,
papá … assim farei …
-----//-----
Aquela
tarde, depois de almoçar, os seus pais decidiram subir ao quarto
para descansar um pouco.
Manuela
fez o mesmo, olhando o seu telemovel …
Julio
tinha a sua tablet … mas decidiu aproveitar o tempo para explorar
um pouco o resto da casa.
A
grande sala, tinha um pequeno anexo … näo tinha portas … só
umas grandes cortinas que escondiam o seu interior.
Para
Julio, aquilo era um convite.
Entrou
e, maravilhado, encontrou um grande conjunto de livros … havia
muitissimos …
Ele
gostava muito de ler … tocou alguns … quase todos eram muito
antigos …
Interessavam-lhe
as historias de misterios … enigmas …
Um
livro, em particular, com uma encadernaçäo especialmente bonita
chamou a sua atençäo … o CONDE DE MONTE CRISTO de ALEXANDRE DUMÁS
… já tinha ouvido falar, no liceu, daquele autor …
Ao
abrir o livro algo caiu na carpete que cobria o chäo … olhou
atentamente … parecia uma chave … guardou-a no bolso das calças
… mais tarde a daria ao seu pai.
Regressou
ao quarto com aquele livro debaixo do braço … iria ler um pouco e
esperar que todos acordassem.
Ia
pela terceira pagina quando, de repente, teve uma ideia.
E
se a chave que encontrou na biblioteca pudesse abrir a porta
misteriosa?
Tirou-a
do bolso e aproximou-se …
Parecia
pequena para aquela fechadura …
Como
chave era estranha … sem dentes, relevos ou desenhos …
Introduziu-a
na abertura … näo entrava … pressionou um pouco … näo parecia
servir … seria de qualquer outra porta …
Decidiu
desistir e continuar com a sua leitura …
Mas
agora a chave näo saía … estava presa …
De
repente, e sem qualquer acçäo por parte de Julio a chave
desapareceu na fechadura … com um click … a porta abriu-se uns
milimetros …
Julio
abriu os olhos com entusiasmo … iria saber o que escondia aquela
porta …
Pouco
a pouco foi abrindo …
Näo
era nada do que tinha imaginado … täo somente … era um espelho …
afastou-se um pouco …
Porque
um velho e simples espelho estava fechado e tapado com uma porta?
Tudo
aquilo era do mais estranho …
Mas
aquele espelho tinha algo de anormal … colocou-se na frente dele …
mas a sua imagem näo apareceu reflectida … e agora tambem reparava
… o quarto tambem näo se via nele … mais parecia uma janela ao
exterior … mas isso era impossivel … do outro lado da parede
estava o corredor interior …
Näo
conseguia compreender … tambem parecia que a superficie näo era
totalmente lisa … tocou-lhe com a mäo … inacreditavelmente os
seus dedos penetraram por aquela superficie … pos as duas mäos …
igual …
Poderia
meter a cabeça e olhar ?!! … sentiu medo … instintivamente
fechou a porta.
Tinha
que contar a alguem …
Os
seus pai seguramente fechariam a porta e ficariam com a chave …
Contaria
a Manuela … sim … podia confiar na sua irmä …
Na
sua cabeça havia uma luta intensa entre a curiosidade de olhar e o
medo pelo que fosse encontrar …
A
curiosidade foi mais forte.
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Poquito
a poco meteu a cabeça … abriu os olhos … via-se uma igreja
pequena … a poucos metros … sentiu ar fresco na cara … tudo
muito tranquilo … tirou a cabeça … näo parecia ser muito
perigoso … ainda sem comprender como, assumia de que era uma janela
… pois ele iria ao outro lado …
Pôs
uma cadeira debaixo … subiu … respirou fundo … e passou …
Olhou
com atençäo por onde saía … uma grande arvore … oca …
Estava
tudo muito escuro … só se ouvia o vento a descer pela serra …
De
repente sentiu vozes … instintivamente escondeu-se entre o mato …
aproximavam-se dois homens … iam conversando … passaram muito
perto dele … continuaram sem parar descendo a rua …
Julio
respirou … mas algo chamou a sua atençäo … que estranha forma
de vestir tinham aqueles homens …
Näo
quis arriscar mais e voltou ao seu quarto …
Tinha
que contar tudo a sua irmä.
Subiu
as escadas de duas em duas e tentou bater suavemente na porta do
quarto dela … Manuela abriu a porta …
—
Que
queres?
—
Tenho
que te mostrar uma coisa … anda !
Ela
olhou para ele intrigada, mas notou que era importante … dispos-se
a segui-lo.
—
Espera
… pöe um kispo.
—
Vamos
á rua?!!
—
Mais
ou menos … Vem!
Já
no quarto de baixo Julio contou-lhe tudo, entre o ar de
incredubilidade dela e alguns sorrisos …
Mas
a expressäo de duvida de Manuela desvaneceu-se por completo quando
ele afastou a porta de madeira e o “espelho” apareceu na sua
frente …
—
E
podemos ir ao outro lado?!
—
Claro
que sim … por isso te disse que trouxesses o kispo?
A
paisagem estava igual como a deixara Julio minutos antes ...
—
Olha,
Julio … esta é a igreja de Säo Pedro … a que está ao lado da
casa do avô …
—
Mas
a igreja de Säo Pedro é velha e esta é nova …
—
É
a mesma … mas esta parece que a pintaram á pouco …
—
E
essa é a rua por onde desceram os dois homens.
—
Curioso
Julio … essa é a rua de Säo Pedro … olha … aí está a casa
do avô …
—
E
onde estäo as outras casas?
—
Näo
estäo … ainda näo …
—
Como
é que ainda näo ?!? Näo entendo nada !!!
—
Estamos
no passado … näo sei exactamente em que ano … regressemos a casa
… voltamos amanhä quando for de dia.
-------//-------
Näo
foi facil convencer os seus pais de que naquela manhä os dois
queriam ficar em casa.
—
Vamos
lá a ver … eu e a vossa mäe temos que ir ao cemiterio … depois
passaremos pela Casa do Povo … estávamos a pensar deixar-vos na
horta … o que quereis fazer em casa ?!!
—
Eu
estou a seguir uma serie em Netflix … — olhou para o irmäo …
—
E
eu estou a ler um livro muito interesante que encontrei na biblioteca
… O CONDE DE MONTE CRISTO …
Jorge
olhou para a sua esposa … ela fez-lhe um gesto cumplice com a
cabeça …
—
Ok.
Entäo … divirtam-se.
Esperaram
até que os seus pais saissem … depois correram para o quarto do
Julio.
Com
a luz do sol tudo se via de uma maneira diferente … desceram pela
rua … encontraram um ambiente humano inesperado … parecia um
mercado … uma feira … havia muita gente … falavam … gritavam
…
—
Tens
razäo, Nela … esta gente veste-se de uma maneira muito antiga …
nem os avós se vestiam assim …
—
ABRAM
ALAS! — alguém gritou.
Aproximava-se
um carro de cavalos …
As
pessoas começaram a murmurar …
—
O
alcaide … vem o alcaide …
De
repente uns braços delgados abraçaram-os por trás e fizeram-os
entrar numa casa.
—
shiuuu!
Näo tenham medo … neste momento näo é seguro que dois meninos
täo pequenos estejam aí fora …
Era
uma mulher de meia idade … parecia amavel …
—
Sou
Isabel … e vocês ?! Quem sois ?!! E porque estais vestidos dessa
maneira?!
Julio
ia responder, mas Manuela adiantou-se.
—
Eu
sou Manuela e ele é Julio … näo somos daqui … estamos de
passagem …
—
E
os vossos país, estäo na feira?!
—
Sim.
Sim. Estäo … quem é o alcaide?
—
Oscar
Ribeiro … já leva alguns anos no cargo.
—
Ribeiro
?!!! — Julio ia a falar mas mais uma vez a sua irmä o fez calar.
—
E
porque lhe chamam alcaide? Sarzedas é uma freguesia … quanto muito
seria Presidente de Junta de Freguesia.
A
mulher olhou para ela muito seria.
—
É
verdade, jovenzita … mas näo te esqueças que até ao ano passado
eramos sede de concelho … do nosso concelho …
—
E
que aconteceu?
—
Pois
… aconteceu que a nossa rainha — fez uma venia ironica —
roubou-nos esse titulo … esse titulo foi nosso durante mais de 600
anos … Oscar era, entäo, o alcaide … agora é o que disseste …
presidente de … isso … mas continuamos a chamar-lhe alcaide.
Manuela
parecia muito interessada na conversa.
—
E
como pessoa … como é?
—
É
um pouco estranho … tem muitas ideias … algumas näo as
compreendo … com outras näo estou de acordo … mas tem sido muito
bom para o povo … é bom homem …
Manuela
fez um sinal ao irmäo.
—
Temos
que ir.
Antes
que Isabel pudesse reaccionar sairam os dois correndo … subiram a
dificil rua de pedra sem parar … encontraram a grande arvore …
voltaram a casa.
—
Incrivel
— para Manuela ainda era dificil controlar a respiraçäo.
—
Näo
compreendi nem a metade do que disseram.
—
Mas
eu sim … já te explicarei …
—
MENINOS!
Já estamos em casa!
—
Perfeito.
Vamos a falar com o papá.
—
Nelita.
Vais-lhe contar?!!!
—
Näo
!!! Tu sigue-me o ritmo.
Julio
foi para o saläo … o pai Jorge descansava no sofá.
Manuela
subiu ao seu quarto e desceu de imediato trazendo un bloco de
apontamentos y uma esferográfica.
—
Que
se passa? — Jorge estava admirado — Vais-me fazer uma entrevista
?!!
—
No,
papá — riram-se todos — mas tenho algumas preguntas para ti …
—
Ui
!!! Que emocionante … dispara !!!
—
Sarzedas
sempre foi freguesia?
Jorge
estranhou a pregunta … mas respondeu encantado.
—
Náäo.
Sarzedas chegou a ser muito importante noutros tempos. Entre 1212 e
1836, foi sede do seu proprio concelho.
—
E
porque deixou de o ser?
—
Deciso
da entäo rainha D.Maria, já näo sei se I ou II … de certeza que
mal aconselhada pelos seus acessores incluiu a aldeia como freguesia
no concelho de Castelo Branco.
—
Ultima
pregunta … o nome da nossa familia sempre foi Ribeiro?
—
Sim.
É uma familia muito antiga. Porquê?
—
Simples
curiosidade, papá … muito obrigada — levantou-se — vem,
Julito.
Sairam
os dois a correr deixando o pai ainda mais surpreendido …
agradavelmente surpreendido …
Já
no quarto de Julio, Manuela parecía muito entusiasmada …
—
Já
podemos tirar conclusöes …
—
Pois
eu sigo sem comprender.
—
Tranquilo,
irmäozito … sabes que historia é a minha disciplina favorita …
olha … o pai contou que Sarzedas perdeu o seu titulo en 1836,
verdade ?!!!
—
Sim.
—
ok.
Do outro lado, Isabel, a mulher da feira, comentou que isso tinha
acontecido o ano passado … logo … do outro lado da janela estamos
em 1837 …
—
Por
isso se vestem todos daquela maneira …
—
E
ouviste o pai dizer que o nome da familia sempre foi Ribeiro?
—
Sim
…
—
Lembras-te
tambem que, durante a viagem para cá, o papá falou de um parente
que tinha desaparecido ha muitos anos?
—
Sim
… mas já näo me lembro do nome …
—
Oscar
… papá disse que se chamava Oscar …
—
E
o alcaide chama-se Oscar Ribeiro … …
—
Exacto,
Julito …
—
O
nosso parente desaparecido será o alcaide?
—
Talvez
… temos que conseguir falar com ele …
—
Amanhä
de manhä voltamos lá.
Para
os dois jovens, mas principalmente para Julio, o resto do dia passou
penosamente lento … olhavam repetidas vezes o relogio … e, para
surpresa dos seus pais, foram para a cama muito cedo.
---------//---------
Ainda
näo eram as 8 da manhä quando Manuela bateu levemente na porta do
quarto de Julio.
O
irmäo já estava pronto … ambos vestiam roupa escura para passar
mais despercebidos.
Do
outro lado estava ainda mais fresco do que no dia anterior …
Desceram
a rua … desta vez estava deserta … a porta de Isabel estava
fechada … era de tabuas de madeira …
Julio
tentou espreitar pelas fisgas … näo se via ninguem dentro …
tentou empurrar … entäo sentiu uma mäo forte agarrar-lhe no
ombro.
—
Qual
é a ideia … ranhoso ?!? Roubar ?!?
—
Näo.
Näo. Estava a ver se Isabel estava em casa.
Entäo
Julio deu-se conta de que eram tres homens, enormes … e que um
deles agarrava tambem a sua irmä.
—
Estais
presos … sabéis o que fazemos, aquí nas Sarzedas, aos ladröes? —
Julio näo conseguia articular palavra — a forca !! … vamos …
Com
violencia arrastraram-os pela rua Nuno Alvares.
Chegaram
a um largo, com um pelourinho … aí se enforcavam os que näo
cumpriam a lei.
—
Esperai!
Queremos falar com o alcaide.
—
E
tu achas que o alcaide tem tempo para perder com dois ladröes
ranhosos?
—
Näo
somos ladröes … nem ranhosos … — era a primeira vez que falava
Manuela — somos da familia do alcaide.
Mas
os homens riram-se alto ao mesmo tempo que punham o nó corredisso a
vólta dos seus pescoços.
—
Eu
sou Manuela Ribeiro e ele é o meu irmäo Julio Ribeiro … somos
familia de Oscar Ribeiro, o alcaide … se näo o informam da nossa
presença aquí ele näo vos perdoará … nunca!
A
voz firme de Manuela fez parar os homens … agora olhavam uns para
os outros …
Um
deles aproximou-se de uma casa, no mesmo largo … deu dois murros na
porta … depois deu um passo atrás, olhou para a varanda e gritou:
—
Alcaide.
Alcaide!
Entretanto
tinham-se juntado umas 50 pessoas alertadas pela situaçäo.
Na
varanda apareceu Oscar Ribeiro.
—
O
que se passa ?!!? Que há assim de täo urgente a esta hora ?!!? —
depois olhou para o pelourinho — quem säo esses pequenos ?!!? e
porque os quereis enforcar ?!!?
—
Apanhámo-los
a roubar, alcaide.
—
E
porque me incomodais ?!!?
—
Por
que dizem que o seu apelido é Ribeiro e que säo da sua familia.
—
Näo
creio … mas esperai … já vou aí.
Poucos
minutos depois Oscar apareceu … dirigiu-se ao mastro de pedra …
deu uma volta olhando …
—
Näo
vos conheço. Quem sois ¿?!
—
Eu
sou Manuela e ele Julio … tu és o nosso quatro avô …
—
E
como é possivel ?!?
Manuela
baixou um pouco a voz.
—
Saimos
pela mesma janela que tu.
A
cara do alcaide alterou-se instantaneamente … olhou para eles muito
serio … depois voltou-se para os tres homens.
—
Tirem-lhes
a corda, vou reunir-me com eles na minha casa.
—
Como
o senhor mande, alcaide.
Entraram
em casa e antes de fechar a porta, Oscar dirijiu-se de novo aos
homens.
—
Dispersem
esta gente … aquí já näo há nada para ver.
—
Esperamos
por eles?
—
Näo.
Continuai a ronda … eu encarrego-me deles.
Passaram
á sala.
—
Sentem-se.
Contem-me a historia da janela … ainda continua lá ?!!?
—
Sim.
Foi por lá que saímos.
—
Eu
descobri a chave — Julio já conseguia falar.
—
Chave?!!?
—
Sim.
Puseram uma porta por dentro com fechadura … assim esteve muitos
anos … isso disse-me o meu pai …
—
O
vosso pai … a que ano pertenceis?
—
2022
Oscar
abriu muito os olhos …
—
2022
?!!? Ou seja !!! os meus pais … os meus irmäos … já morreram —
o seu olhar entristeceu-se.
—
Porque
ficaste aquí ?
—
Quando
quis regressar a arvore näo me deu acesso … alguem a fechou …
—
Quem
?!
—
Tenho
uma ideia … mas já näo importa … refiz a minha vida aquí …
casei … tenho filhos … um pouco mais velhos que vocês …
—
E
como chegaste a alcaide?
—
Quando
fiquei aquí havia uma diferença de uns 100 anos a menos …
servi-me dos conhecimentos que tinha do futuro daqui para exercer
influencia … tinha vantagem … usei-a .
Julio
levantou-se, correu para ele e abraçou-o.
—
Agora
podes voltar connosco.
Oscar
devolveu-lhe o abraço … manteve-se uns momentos em silencio …
depois fez um sinal a Manuela para que se aproximasse …
Com
os dois miudos sentados, um em cada joelho suspirou …
—
Näo.
Näo vou voltar … näo posso …
—
Porquê
?!!!
—
Olha,
Julio … passaram já muitos anos … todos os meus já morreram …
o mundo que eu deixei já näo está … já näo pertenço aí …
—
Compreendo-te
— Manuela recostou-se no seu peito …
—
E,
além disso, tenho a minha familia aquí.
Voltou
o silencio.
—
Oiçam,
meninos … vou pedir-vos uma coisa …
—
Diz.
—
Quero
que voltem á vossa realidade … que fechem de novo a janela …
que ninguém, nunca mais, passe através dela … quero que me
prometam isso … agora!
—
Ok.
Assim faremos.
—
Vamos.
Acompanho-vos até á arvore.
Caminharam
em silencio … ninguem se cruzou com eles … ao lado da arvore
ajoelhou-se e abraçou-os de novo.
—
Que
vos corra tudo bem na vida, pequenos — estava emocionado — foi um
prazer conhecer-vos.
—
Näo
queres entrar? Só para dar uma vista de olhos ?
Oscar
duvidou um pouco … mas decidiu.
—
É
melhor näo … vamos … ide …
A
primeira coisa de que se deram conta ao voltar ao quarto de Julio foi
o som de chamada do telemovel da Manuela.
—
Si?!
Mamä ?!!! Estamos em casa … depois contamos … ok … desculpa …
—
Que
se passa, mana?!
—
Papá
e mamä estäo aflitos, a nossa procura …
Julio
olhou para o pequeno relogio na mesinha de cabeceira … 11.30h …
os seus pais estavam preocupados desde as 8.30h …
—
Nelita
… contamos-lhes quando chegarem?
—
Näo
sei se é boa ideia … penso que o melhor será voltar a fechar a
janela e esconder a chave …
Julio
levantou-se e fechou a porta de madeira. c
—
Vem,
Nelita … vamos deixar a chave onde a encontrei.
Saiam
da bibloteca quando chegaram Jorge e Maria.
—
O
que vos aconteceu? Estávamos muito preocupados …
—
Por
favor desculpem … fomos á serra muito cedo para ver as plantas …
Uma
vez mais Manuela tomava a iniciativa …
—
Sem
nos dizer nada?!
—
Vocês
ainda estavam a dormir … näo quisemos fazer barulho … desculpem
… perdemos a noçäo do tempo …
Julio
correu a abraçar os pais …
—
Nem
imaginam as coisas lindas que vimos …
Manuela
foi-se aproximando e juntou-se ao abraço de familia … o segredo
estava protegido … assim se manteria a janela oculta.
Fim
(näo bem)
Neste
relato quis, no fundo, prestar uma singela homenagem á aldeia de
Sarzedas … outrora sede do seu proprio concelho e hoje como
querendo renascer da sua quase desapariçäo nos anos 70.
O
aumento populacional e social teve que ver com a instalaçäo do
fornecimento de energia electrica e de agua canalizada, o que se
deveu a acçäo do meu falecido pai (um Ribeiro) juntamente com
outras pessoas.
A
historia em si é ficçäo, as datas e momentos säo reais no seu
enquadramento historico.
O
alcaide (assim se chamava antes) Oscar Ribeiro nunca existiu … a
familia Ribeiro sim … eram os meus avós … a casa grande de pedra
ao lado da capela de Säo Pedro näo existe … a igreja sim.
Uns
anos depois o pelourinho foi destruido … mais tarde ergueram outro
no mesmo sitio e utilizando tres blocos de pedra que tinham
pertencido ao original.
Sarzedas,
está hoje incluida no roteiro das aldeias do Xisto.
Fim
( agora sim )
.
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